Post originalmente publicado no Cultura em Processo.


Viviana Zelizer é uma pesquisadora que tem influenciado significativamente meus estudos; por isso o propósito desse texto é apresentar os porquês, na esperança que essa autora contribua também com as pesquisas de vocês. Eu e alguns colegas do NUSMER concordamos que a obra dela ainda é pouco explorada aqui pelo Brasil e, talvez, isso seja ao menos em parte justificado pelo fato de a maioria dos textos dela ainda não terem tradução para o português. Mas deixemos de lado tais hipóteses desimportantes e vamos ao pensamento da autora:

[Alguns casos] mostram que o processo de racionalização e mercantilização do mundo não tem tido as homogenizantes ou inescapavelmente corruptivas conseqüências que previam os pensadores clássicos. Os mercados são inevitável, constante e ricamente moldados pelos sistemas de significados atribuídos pelas pessoas e pelas variáveis relações sociais (Zelizer, 1985).

Esse trecho, que está na introdução de um livro da autora, se explorado, creio que pode nos ajudar nessa apresentação pretendida. Antes de mais nada os casos que omiti na citação são, no original do texto, referência a estudos da própria Zelizer — mais especificamente, um caso que ela explora no livro cuja introdução contém tal trecho e um outro caso estudado alguns anos antes. Não exponho esses exemplos agora no começo pois achei imaturo fazê-lo, mas ao longo do texto colocarei exemplos da autora.

De qualquer modo, a autora acredita que a sociologia econômica, além de estudar as empresas e o mercado, deva se preocupar igualmente com as formas de produção, consumo, distribuição, trocas etc., pois isso nos serviria para identificar processos e relações sociais no coração da economia. Em um primeiro momento poderia-se supor uma dicotomia entre social e econômico, mas a autora afirma que isso seria uma hipótese falsa: não podemos opor, como rivais, como opostos excludentes, as empresas, corporações, mercado financeiro às abordagens sociais, culturais, sentimentais e íntimas. Assim estaríamos assumindo que existe uma economia real (transações mediadas exclusivamente pelo mercado e seus valores) e, portanto, valores homogeneizante (como o dinheiro, por exemplo). Tais críticas ela iniciou mais de duas décadas atrás e permanecem presentes em seus artigos até hoje.

Para se esquivar dessa visão (tida como equivocada) ela trabalha a idéia de mercados múltiplos, um conceito que permite juntar os meios universalizantes (do mercado) com os processos individualizantes (o que ela chama de mercados particulares) não como contradição, mas apenas como aspectos diferentes de um processo único: podemos ver a economia do topo (a partir das instituições, por exemplo) ou da sua base (a partir das pessoas e de seus múltiplos processos personalizados e locais de diferenciação).

Um dos estudos mais ilustrativos desse conceito é o dos dinheiros especiais: segundo Zelizer, a criação de uma moeda nacional pode soar como um esforço governamental forte no sentido de produzir (mais um) elemento simbólico altamente relevante na unificação nacional. Por outro lado, a autora acredita que paralelamente a essa iniciativa, as pessoas e instituições se envolvem através de moedas distintas e personalizadas. A partir de um aspecto integrativo, de diferentes formas, momentos, meios e tipos de troca, o dinheiro é dotado de valores pessoais, religiosos, éticos, raciais, etários, de gênero etc. O que a autora quer dizer é que não vemos sempre da mesma forma todo dinheiro: temos valores diferentes para o que é ganho no jogo, no trabalho como salário, no trabalho como bônus, por herança, de presente de alguém etc. Ainda existe, além disso, um aspecto de segmentação no processo de significação do dinheiro: em determinados segmentos e locais outras coisas se tornam moeda de troca: cigarros, cupons, tickets, ordens, empenhos, selos etc. valem como dinheiro, mas não o são de forma plena em uma economia nacional. Com isso a autora intenciona mostrar que (seja pelo aspecto de integração ou de segmentação) a criação de uma moeda nacional não resulta exclusivamente em um processo homogeneizante.

Na esfera do consumo Zelizer alega que acontece o mesmo: existe um esforço de padronização e um de diferenciação; por um lado os produtos (em sua maioria) têm sua produção centralizada, são produzidos em massa, mas, por outro lado, o uso, os significados e as ressignificações atribuídas a eles constitui um lado não excludente do mesmo processo. Seja pela customizações (por exemplo, a forma que determinas pessoas usam um mesmo boné — virado para frente, para trás ou para o lado) ou pelos mercados segmentados (McDonalds Kosher, por exemplo), mesmo a produção em massa de um produto não é totalmente homogeneizante. A produção em massa, no máximo, tem um primeiro momento de profusão e uma temporária predominância, mas cai inevitavelmente na diferenciação ao estar nas mãos das pessoas. Assim, para compreendermos o consumo temos que considerar o quão significativo é a penetração das relações sociais nos processo econômicos, as formas de uso e valores das pessoas em relação aos bens.

Ao meu ver, a grande contribuição de Zelizer está no conjunto que evita uma dicotomização (social/mercado, quente/frio, bom/ruim, subjetivo/objetivo), um conjunto que não recrimina nem o mercado e nem a cultura de consumo, e, por fim, um conjunto que consegue aliviar as diferenças entre a Economia Neoclássica (que tem muito a ver com a teoria da escolha racional) e a Nova Sociologia Econômica (que busca estudar uma dimensão socializadora no mercado) ao equilibrar a análise do indivíduo e suas subjetividades com a das instituições e suas objetividades de forma não-excludente e, portanto, mais rica. E digo isso pois vejo as bases dessas duas áreas historicamente rivais e, ao mesmo tempo, muito contundentes com a realidade — o mérito de Zelizer é resolver essa situação teórica paradoxal de forma a conciliar as bases dessa contradição, eliminando, assim, a própria contradição.