Post originalmente publicado na Data Science Brigade.
Muitos de vocês tem acompanhado o esforço da Operação Serenata de Amor para aumentar nosso poder de controle social sobre os gastos públicos. Somos transparentes, usamos os dados que a Lei de Acesso à Informação oferece e ainda fazemos tudo com código aberto. Mas esbarramos em algo inesperado: deputados que desconhecem as leis. As próprias leis que eles escrevem, discutem, votam e aprovam. Vivemos em um país onde o legislativo fala com o eleitor esbanjando descaso ou desconhecimento da lei.
Se essa afirmação parece absurda, vamos aos fatos. Não quero fazer tempestade em copo d’água com o Dep. Roberto de Lucena, mas essa resposta que ele ofereceu ao Gustavo Miranda, a um de nossos colaboradores, é um exemplo claríssimo dessa situação:
O colaborador questionava sobre um reembolso feito pela Cota para Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP) em nome do deputado. No Jarbas mostramos esse reembolso assim. E a própria Câmara disponibiliza o cupom fiscal referente a essa despesa:
O deputado consumiu em uma refeição três pratos: um medalhão mais dois salmões. Ainda pediu um acompanhamento extra e quatro sucos de laranja. Parece razoável deduzir que o cupom fiscal é referente a refeições de mais de uma pessoa — afinal, mesmo alguém com muito apetite raramente come três pratos e toma 4 bebidas. Claro, acontece. Mas é razoável suspeitar que isso se trata de um reembolso que cobre refeição de três pessoas. E é exatamente isso que a lei, aprovada pela mesma Câmara da qual o deputado faz parte, proíbe.
O ato da mesa nº 43, de 21 de maio de 2009, que institui a CEAP determina no seu artigo segundo que a verba se destina, entre outras coisas, a ressarcir a alimentação do parlamentar — não incluindo assessores, convidados ou quem quer que seja.
Ou seja, se o deputado era uma das três pessoas se alimentando com a comida daquele cupom fiscal, ele poderia ter descontado o valor das demais refeições e pedido um reembolso parcial (por exemplo, de R$ 30 pelo filé mais R$ 7 por dois dos sucos), mas não dos mais de R$ 100.
Mas ele não o fez. O questionamos sobre isso e a pérola da resposta, como já dita foi: a Câmara aprovou. Ou, se preferir, nas palavras dele: Essa despesa foi avaliada e aprovada pelo departamento responsável na Câmara dos Deputados. O deputado, além de ignorar a lei uma vez ao pedir reembolso de três refeições, não perdeu a chance de ignorar a lei uma segunda vez demonstrando enorme desconhecimento do parágrafo 10 do artigo 4º do mesmíssimo texto:
A Coordenação de Gestão de Cota Parlamentar do Departamento de Finanças, Orçamento e Contabilidade fiscalizará os gastos apenas no que respeita à regularidade fiscal e contábil da documentação comprobatória, cabendo exclusivamente ao Deputado responsabilizar-se pela compatibilidade do objeto do gasto com a legislação, fato que o parlamentar atestará expressamente mediante declaração escrita.
Em outras palavras o fato da Câmara ter avaliado e aprovado o reembolso apenas diz respeito ao cupom fiscal — o documento é válido para demonstrar a despesa. No entanto a compatibilidade do gasto com a lei não é de responsabilidade da Câmara. e um deputado vai numa boate e pede reembolso por um filé mignon de R$ 400, alegando ser necessário para seu trabalho como parlamentar, a Câmara não tem base legal para rejeitar o pedido. Não cabe à administração Câmara avaliar se o motivo pelo qual o deputado pede reembolso é o que a lei determina para essa verba. Isso é de inteira responsabilidade do deputado.
Portanto, respostas como a do Dep. Roberto de Lucena valem, em uma escala de 0 a 10, nada. E são muitos usando a mesma desculpa para se justificar perante casos suspeitos que a Rosie tem encontrado. O Dep. Marcon, assim como muitos outros, caiu nessa mesma falácia:
A Câmara possui um setor que analisa e aprova as prestações de contas de cada parlamentar, portanto, se este valor (que consumi e paguei) estivesse ferindo alguma norma da Casa este setor responsável teria apontado o problema e, certamente, não aprovaria minha despesa, devolvendo a nota sem ressarcimento.
Nós não caímos, senhores deputados. Mas os convidamos a ler e reler o ato da mesa nº 43, de 21 de maio de 2009 antes de induzirem seus eleitores ao erro — proposital ou acidentalmente.
Essa situação nos leva a três reflexões importantes sobre o futuro do controle social sobre os gastos públicos — ou seja, sobre o quanto realmente as instituições estão preparadas e dispostas a lidar com o direito dos cidadãos ficarem de olho em como os nossos impostos tem sido reinvestidos na sociedade:
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Primeiro, ao encontrar possíveis desvios de dinheiro público, quais ferramentas estão de fato ao alcance da população para fazer com que esse dinheiro volte para a população? A Câmara, como explicamos, é a instância a se procurar nesses casos. Se os deputados ignoram os ofícios internos da administração da Câmara, ou se eles respondem à administração da Câmara coisas incompatíveis ou irrelevantes perante a lei, essa mesma Câmara não tem poder algum para solucionar ou investigar ou questionar a atitude do deputado.
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Segundo, se resolvemos partir para a esfera jurídica, já ouvimos que apenas casos com um valor elevado (alguns dizem R$ 10 mil, outros mais R$ 70 mil desviados) valeriam a pena. Isso quer dizer que se o processo visa cobrir danos ao erário, e se o custo do processo em si (salário de servidores, promotores, procuradores, juízes, mais equipamento e gastos marginais) for menor do que o dinheiro a ser reavido, na verdade o processo gerou mais prejuízo ao erário do que potencialmente poderia ter reavido. Entendemos os custos do judiciário: um salário de um procurador é entre R$ 30 e 40 mil, e o dos assessores também não são salários baixos. Mas o ponto que gostaríamos de deixar mais claro é que não se trata de R$ 100 reais, como no caso do Dep. Roberto de Lucena. Se trata de prevenir que esse comportamento continue, que essa sensação de impunidade se perpetue — em outras palavras, nos interessa mais o ganho social para o médio e longo prazo ao combater causas aparentemente pequenas como essas. Ou ainda, [nas palavras de um dos nossos seguidores no Reddit]:
Só que tal processo também é importante para coibir desvios futuros de verba. Talvez valesse a pena intensificar os processos, tendo prejuízo inicialmente mas no longo prazo diminuindo os desvios. É um tipo de pressão que a sociedade civil deveria fazer, para diminuir esses limites. Seria uma mudança em direção à moralização a política
3
Terceiro e mais importante, a questão que fica é como combater a cultura endêmica de corrupção em um país onde deputados ignoram a própria lei que eles mesmos escrevem. Em diversas conversas com membros do poder público o argumento sempre esteve focado nos valores monetário, mas o que estamos fazendo tem dois significados muito mais profundos que isso. Antes de mais nada estamos exercendo nossos direitos cívicos, é a nossa forma de usar tecnologia como voz política que nos leva a levantar esses questionamentos. Além disso como cultivar uma cultura democrática se no embate de ideias nossos representantes legais agem de maneira personalista, patriarcal e ignorante perante as leis e o eleitorado? Como bem resumiu nossa mentora Yaso, eles vivem em um eterno se colar, colou — e quando o próprio legislativo é assim, o que se poderia sonhar de democracia já foi-se pelo ralo.
Não se trata aqui de focar na resposta de Robertos e Dionilsos. Nosso foco é em responsabilizar os nossos representantes de acordo com as regras que eles legislam. É nosso papel como cidadãos em uma democracia. Gostem eles ou não.
Continuamos em busca de melhores formas de levar esse diálogo com deputados e órgãos públicos. Dependemos de pessoas como você, que querem ver a continuidade do trabalho que iniciamos. Compartilhe esse texto, questione seu deputado e nos conte suas ideias e acompanhe nosso trabalho no Facebook e aqui no Medium.
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